sábado, 23 de junho de 2012

O DESLUMBRAMENTO


Quando vivia em Salvador, antes de mudar para São Paulo, morava num apartamento grande que tinha até quarto para empregados, e como eu não tinha empregados para dormir em casa usava o local para guardar coisas. Sou canceriano e gosto de colecionar, guardar, ter. Neste quarto invariavelmente tinha muitos livros, revistas, jornais, fitas de vídeo, coisas que eu jurava ser um arquivo pessoal para consultas. Quando fui morar em São Paulo deixei várias caixas na garagem da casa da minha tia Liane para vir buscar depois. Mas o apartamento de São Paulo não era tão grande e nunca consegui levar as coisas para lá. Quando voltei a morar em Salvador fui intimado a levar as caixas e dar um destino ao seu conteúdo. É o que tenho feito ultimamente, abro as caixas, revisito o passado, presenteio amigos com relíquias que guardei e doei muita coisa para reciclagem. A cooperativa de papel ficou bem feliz quando cheguei com o carro cheio, mais de setenta quilos.

Mas porque abri esse post com uma preleção sobre o passado? Tenho uma mania de grifar textos, seja de livro, jornal ou revista, e quando estava separando as coisas me deparei com inúmeros recortes de revista e jornais grifados com lápis ou caneta. Uma revista Veja de 17/7/1985 me chamou a atenção, era uma entrevista com a escritora Marguerite Duras e o grifo que eu fiz estava sob a seguinte frase: “diante de um bom escritor, a gente nunca sabe aonde ele quer nos levar...”.

Já falei de Marguerite Duras (1914-1996) aqui no blog, post ‘A Dor’ de 28/11/2010, e acho-a perfeita para esta série de livros que nos levam a pensar. Então cheguei a O Deslumbramento, reli em uma tarde de sábado porque o livro é curto, apenas 145 páginas, e novamente me pus a pensar. Por que temos a necessidade de viver uma história duas ou mais vezes? Uma quando efetivamente a vivemos e outras quando contamos aos amigos, escrevemos sobre ela, ou sonhamos com ela tempos depois. E porque damos à segunda vez mais importância que a primeira? Damos mais importância ao sonho, ao relato, do que a hora da vivência. Ficou complexo?

No livro temos a história da adolescente Lol Stein que perde o noivo Michael para uma desconhecida no baile do Cassino Municipal de T. Beach. Até aí nada de novo, exceto pela cena melodramática e quase patética que a autora descreve e que necessita que seja assim para criar um romance instigante na minha humilde opinião.

“Quando Michael Richardson se voltou para Lol e a tirou para dançar pela última vez na vida deles... Ele se tornara diferente. Todos podiam percebê-lo... Lol olhava-o, olhava-o mudar. A mulher estava só. Michael dirigiu-se para ela com emoção tão intensa que se ficava com medo só de pensar que ele pudesse ser rejeitado. Também Lol, em suspense, esperou. A mulher não recusou. Terminada a primeira dança, Michael se aproximara de Lol como de costume. Depois, ao fim da dança seguinte, não mais tinha ido reencontrar Lol... De olhos baixos, os dois passaram diante dela. Lol seguiu-os com os olhos pelos jardins. Quando não mais os viu, caiu no chão, desmaiada.”

Dez anos se passam desde a cena interrompida e que agora volta. Lol está casada, tem três filhos, é uma mulher alegre e tranquila até que precisa voltar a morar em T. Beath. Certa tarde passa em frente a sua casa uma mulher que lhe pareceu familiar. Depois desse dia ela sonha com o baile, seu desequilíbrio e a imutável sucessão de dias que se seguiram.

Eu fico a pensar... Lol precisa mesmo viver duas vezes a mesma cena?

Cidade do abandono: Salvador/BA
Local: Rocca Forneria
Data: 07/09/2012

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